Sinais de minha ignorância
Para um homem como eu, imperador de todos os meus sentidos, a quem o mundo é belamente projetado, estar na condição de interpretado é uma experiência relevadora
No palco, um homem negro gesticula. Braços para cima e para baixo, dedos se entrelaçam e afastam, caretas, olhos arregalados, depois se fecham, braço gira, volta e não para. Isso em movimentos indecifráveis. Quer dizer, para mim. Até reconheço aqueles movimentos como uma linguagem, quando se reconhece uma outra língua sem saber bem do que se trata. Eu sei que língua é, só não sei falar.
Meu mundo gira quando uma voz surge nos alto-falantes do teatro. É uma intérprete, decrifrando os movimentos daquele rapaz de uma língua brasileira para outra língua brasileira. Na peça Oz, em cartaz no Sesc Vila Mariana, o ator Edinho Santos se apresenta em Libras, enquanto a intérprete Larissa Martins empresta sua voz para que pessoas como eu possam entendê-lo.
Para um homem como eu, imperador de todos os meus sentidos, a quem o mundo é belamente projetado, estar na condição de interpretado é uma experiência relevadora. O texto é intercalado pelas falas (literalmente com a voz, aqui é preciso enfatizar) da atriz Letícia Calvosa convertidas também para Libras, e os sinais de Edinho oralizados pela intérprete.
A peça conta essa relação entre os personagens de Letícia e Edinho, ele sendo um homem surdo. Simples assim, mas que levantou um monte de questões que eu nunca fiz. Afina, qual espaço tem um homem negro surdo na linguagem do amor? É preciso que o outro esteja disposto a se comunicar, a entender, a um jeito completamente distinto de pensar.
O amor silenciosamente gestual em Libras carrega um lirismo difícil de explicar. É expressivo, pois tem que ser. A linguagem não se restringe a um movimento convencional de braços e mãos. Envolve o rosto em expressões, sorrisos, olhos, movimentos de boca distintos. A gente que escuta e foca em ouvir não percebe, mas o corpo inteiro fala mais que a voz. Os dois fazem uma dança gestual silenciosa, íntima, próxima, linda.
Em se falando de dança, há um momento em que o casal coloca um som para, juntinhos, balançarem o corpo. É uma cena bonita, com as luzes acompanhando a sonoridade, os dois no mesmo ritmo, sincronia… e a música para… e eles continuam dançando. Meu mundo gira novamente e eu caio em uma pergunta extremamente simples: “como é a dança para uma pessoa surda?”. Ali, eu pude sentir um momento disso. Essa é uma dúvida completamente corriqueira, mas que eu nuca me fiz, talvez porque meu umbigo seja grande demais para olhar além dele.
A beleza de uma experiência como essa é aprender como há uma língua toda diferente, sendo a língua do meu país. Ando estudando Mandarim e como há toda uma forma de pensar o mundo a partir de uma nova forma de se expressar. Também como, tão mais a gente aprende, tão maior é a ignorância.
São esses sinais de minha ignorância que me movem. Obrigado, mais uma vez, Sesc.